O Olhar do Outro: um passeio pela arte homoerótica do Museu do Prado

Em 2017, por ocasião da celebração da World Pride em Madri, o Museu do Prado, uma das instituições de arte mais importantes do mundo, exibiu a exposição "O Olhar do Outro". Um passeio por 30 obras que nos apresentam erotismo, relações homoafetivas e corpos e identidades fora dos padrões sociais. Para o curador Carlos G. Navarro, esses trabalhos ajudam a entender a história - muitas vezes silenciosa - da homossexualidade na arte. Confira alguns destaques desta exposição! 

Júpiter e os deuses pedindo a Apolo que retome as rédeas de sua carruagem

Júpiter e os deuses pedindo a Apolo que retome as rédeas de sua carruagem de Cornelis Corneliz van Haarlem - Imagem: Museu do Prado

No Prado, podemos observar vários deuses gregos juntos e desnudos! Este quadro do pintor holandês Cornelis Corneliz van Haarlem, de 1594, retrata a seguinte história: Apolo, por insistência do filho Fáeton, concorda em emprestar a ele a sua carruagem do Sol. Mas o rapaz faz algumas barbeiragens, provocando oscilações nos astros e arriscando inclusive provocar uma destruição na Terra. Assim, para evitar uma catástrofe, Júpiter se vê obrigado a detê-lo, fulminando o coitado com um raio! Eita... Assolado pela dor, Apolo, que está sentado em uma pedra no centro, coberto com um manto em sinal de luto, se recusa a dirigir novamente sua carruagem. A cena retratada aqui representa o momento em que Júpiter, com o cetro na mão, pede desculpas a Apolo por causar a morte do seu filho e implora, junto com os demais deuses, que ele retorne à sua carruagem para que o mundo não fique mergulhado na escuridão. Na cena, há também diversos mortais, jovens e velhos, e, bem ao fundo, a carruagem destruída pelo raio. Já no primeiro plano, os deuses, claro! Alguns, aliás, bem salientes, como aquele usando o capacete com asas vermelhas. Bem persuasivo, não é mesmo?

O Rapto de Ganimedes

O Rapto de Ganimedes de Peter Paul Rubens - Imagem: Museu do Prado

Espelho, espelho meu, existe alguém mais belo do que eu?! Se essa pergunta tivesse sido feita por Ganimedes, a resposta seria um retumbante não. Príncipe de Troia, ele era o mais lindo entre os mortais, por quem se apaixonou inclusive o grande deus dos deuses. A paixão era tanta, que Zeus (também conhecido como Júpiter) se transformou em uma águia para sequestrá-lo e levá-lo ao Olimpo, para que ele fosse seu amante e copeiro dos deuses. O mito constituiu um modelo para a relação homoerótica grega conhecida como pederastia, entre um homem mais velho e um mais jovem. Posteriormente, Ganimedes se tornou um dos principais símbolos do amor homossexual nas artes visuais e literárias, da época do Renascimento ao final da era vitoriana, como podemos ver nesta pintura do Museu do Prado, por exemplo, que representa o momento do rapto do rapaz. Ela foi executada entre 1636 e 1638 por Peter Paul Rubens, pintor barroco cujo estilo enfatizava movimento, cor e sensualidade. 

Diana e Calisto

Diana e Calisto de Peter Paul Rubens - Imagem: Museu do Prado

Outra pintura de Peter Paul Rubens que faz uso da mitologia para representar amores entre pessoas do mesmo sexo é "Diana e Calisto", produzida entre 1637 e 1638. Na mitologia grega, Calisto era uma ninfa de grande beleza, seguidora de Diana, deusa da lua e da caça, muito poderosa e forte. Ela era inclusive, sua ninfa favorita, e assim como suas companheiras, deveria se manter virgem. E Zeus, insaciável como sempre, se sentiu atraído por ela. E para conseguir seduzir Calisto e transar com ela, se transformou na deusa Diana. Rubens representa o momento mais dramático da história: enquanto Diana e suas ninfas se preparam para tomar um banho gostoso, Calisto revela a sua gravidez. Envergonhada, tenta se cobrir com suas roupas. Diana está representada na ponta esquerda, como podemos observar pela pequena lua em sua cabeça, e com os braços estendidos. O mito de "Diana e Calisto" foi muito utilizado em pinturas renascentistas e barrocas e muitas destas obras representavam também o flerte entre as duas, com muito erotismo e sensualidade. 

A Siesta ou Cena Pompeiana

A Siesta ou Cena Pompeiana de Lawrence Alma-Tadema - Imagem: Museu do Prado

Nesta pintura de grandes proporções feita em 1868 por Lawrence Alma-Tadema, um dos nomes mais proeminentes do neoclassicismo europeu, observamos uma cena íntima entre dois homens que nos remete à clássica relação de pederastia. Trata-se possivelmente de um mestre e seu discípulo, que curtem uma "siesta", aquele momento de descanso e soneca pós-refeição, escutando languidamente a música que a bela jovem extrai da sua flauta. Além disso, estão sob a proteção de Vênus, deusa do amor, que está em cima da mesa no primeiro plano, observando-os, assim como nós. Essa cena representaria o momento posterior aos populares banquetes do mundo antigo realizados entre os homens mais proeminentes da sociedade, que se reuniam para comer e desfrutar da transitoriedade da vida. A obra seria, portanto, uma exaltação ao hedonismo antigo, uma forma muito diferente de aproveitar a vida, que o pintor contrasta com sua própria sociedade, da era vitoriana, regida por estritas normas sociais de comportamento.

São Sebastião

São Sebastião de Guido Reni - Imagem: Museu do Prado

Que tal mais uma representação seminua e juvenil do nosso querido São Sebastião? Pois aqui temos uma das diversas pinturas sobre este importante santo católico feita por Guido Reni, um dos mais importantes pintores do Barroco italiano. Este óleo sobre tela foi feita entre 1617 e 1619 e retrata o início do martírio. Torso desnudo, flecha, corpo amarrado a uma árvore e um pano cobrindo a genitália, características que fizeram São Sebastião ir além de uma importante figura religiosa e se tornar também um símbolo gay, como falamos aqui nesse post. E uma curiosidade sobre esta obra do Prado: em algum momento da sua história, provavelmente durante o século XVIII, a imagem do santo foi considerada muito ousada e sua tanga foi estendida para cima, para ocultar mais a coxa direita e a parte inferior do abdômen, ou seja, a área próxima à púbis. Sem comentários para esses moralismos...

Hermafrodito dormindo

Hermafrodito dormindo de Matteo Bonuccelli - Imagem: Museu do Prado

Assim como o Louvre, o Museu do Prado também tem uma estátua de hermafrodita para chamar de sua... Esta escultura em bronze, datada de 1652, foi uma encomenda de Diego Velázquez, grande pintor espanhol, para a decoração do Palácio do Rei Filipe IV em Madri. É, portanto, uma cópia daquela em mármore que está no Louvre e pertencia à Coleção do Cardeal Borghese de Roma. Ah, e dizem que esta estátua foi uma das inspirações para o único nu feminino de Velázquez, "Vênus ao espelho", que está na National Gallery de Londres.

Davi vence Golias 

Davi vence Golias de Caravaggio - Imagem: Museu do Prado

Que tal um pouco de sadomasoquismo e dominação?! Pois poderíamos muito bem fazer essa leitura desta pintura de Caravaggio, que também gostava de uma curtição com outros homens, pelo que se sabe... Aliás, há um interessante filme do britânico Derek Jarman sobre o pintor barroco italiano que aborda sua sexualidade! Mas voltando ao quadro do Museu do Prado, feito por volta de 1600, ele representa o episódio bíblico do jovem Davi que mata o gigante Golias, tema bastante retratado pelos pintores da época. O próprio Caravaggio tem outras pinturas similares, onde ele inclusive se representa como o Golias decapitado. A imagem sombria e intimista nos leva diretamente ao rosto do gigante, repleto de expressividade, um misto de agonia e êxtase, e nas mãos do jovem Davi, que domina Golias de forma tranquila e eficiente, inclusive apoiando o peso do seu joelho nas costas do gigante e puxando seus cabelos. É ou não é homoerótico isso, gente?!

Orestes e Pílades ou Castor e Pólux

Orestes e Pílades ou Castor e Pólux da Escola de Pasíteles - Imagem: Museu do Prado

Esses são brothers... Literalmente! Em uma das interpretações desta escultura, acredita-se que estes dois jovens desnudos seriam Castor e Pólux, filhos de Leda, a esposa do rei de Esparta. De acordo com a mitologia grega, Zeus havia ficado fascinado com a beleza da moça, para variar... E para conseguir transar com ela, ele se transformou em um belo cisne e foi atrás dela quando ela tomava banho em um rio. Depois de nove meses, ela ganhou o resultado, gerando quatro filhos! Pólux e Helena, imortais e filhos de Zeus, e Castor e Clitemnestra, mortais e filhos do marido. Mesmo tendo pais diferentes, Castor e Pólux desenvolveram uma bela relação de amizade e se tornaram inseparáveis! Quando Castor faleceu, Pólux suplicou ao pai que não o separasse do irmão. Zeus, comovido, e para celebrar o amor fraterno dos dois, decidiu transformá-los na constelação de gêmeos, pois assim eles nunca mais se separariam! Ohh, que lindo! Outra interpretação desta escultura é de que estes dois rapazes seriam Orestes, filho do rei Agamenon e da rainha Clitemnestra, e Pílades, seu inseparável amigo e parceiro de qualquer empreitada. Enfim, seja qual for a interpretação, uma coisa é certa: brothers!

A mulher barbada ou Magdalena Ventura com seu esposo

A mulher barbada ou Magdalena Ventura com seu esposo de José de Ribera - Imagem: Museu do Prado

Este quadro do pintor espanhol José de Ribera, feito em 1631, é um exemplo de um costume da pintura espanhola dos séculos XVI e XVII de retratar anões e pessoas com corpos não normativos. Neste caso, nos deparamos com uma figura bem masculina, barbuda e calva, mas que possui um peito feminino, amamentando a criança. Na lápide do canto direito, temos a explicação: "Um grande milagre da natureza: Magdalena Ventura, da cidade de Accumoli, do Reino de Nápoles, de 52 anos. E o que é incomum é que, quando tinha 37 anos, começou a se cobrir de pelos e desenvolver uma barba tão longa e exuberante que poderia ser vista em um mestre barbudo, e não em uma mulher que já deu três filhos ao marido Felice de Amici, que se encontra ao seu lado." Para este trabalho documental, Ribera utiliza um intenso jogo de luz e sombra que, associado a uma exposição natural e digna dos personagens, impregna a obra com imensa humanidade. Ao invés desta figura inusual nos provocar aversão, a expressão quase resignada do casal nos desperta simpatia e respeito.


Espero que tenha gostado desse passeio cultural pelo Museu do Prado de Madri! Ah, e caso não tenha visto, também fizemos um post com algumas das obras homoeróticas do Louvre de Paris! É só acessar aqui este link! Em breve, passearemos por outros museus! ;)

Aqui vai uma listinha de outros posts anteriores relacionados à arte:
Viagem iconográfica: São Sebastião, de símbolo religioso a ícone gay
Inhotim: paraíso para quem curte natureza e arte interativa

Por Tiago Elídio...

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