Confira a entrevista com Pierre Lepe Cortez, do MUMS Chile, organização chilena de defesa dos direitos LGBT

No Chile, uma das principais organizações em defesa dos direitos LGBT é o "Movimiento por la Diversidad Sexual", conhecida também como MUMS. A responsável pelo Departamento de Comunicações, Pierre Lepe Cortez, nos concedeu uma entrevista e nos contou um pouco sobre a história da organização, falou um pouco sobre política e os direitos e dificuldades das pessoas LGBT no país, deu algumas dicas culturais e comentou como é ser uma mulher trans no Chile. Confira!

Pierre e Sapeca na sede do MUMS

LGBT Out There: Conta pra gente um pouco a história do MUMS e suas principais atividades.
Pierre Lepe Cortez: Na verdade a história do MUMS é bem longa. De forma resumida, o MUMS nasce a princípio como MOVILH (Movimiento de Integración y Liberación Homosexual), conhecido como MOVILH Histórico, e no fim dos anos 80, início dos 90, o MOVILH se divide e nasce o MUMS como um encontro de entidades gays, lésbicas, transexuais que resgatam um pouco o início do MOVILH, pois houve vários problemas ideológicos e políticos. As atividades são muitas. Geralmente estão relacionadas ao âmbito artístico-ativista-político, mas, no começo desta década, estavam um pouco paradas. No ano passado, quando se renovou a diretoria do MUMS, começaram novas atividades, como as do Departamento de Educação, que está focando muito a área de educação não-sexista. Há o programa de escola popular, que é um espaço de educação comunitária, não-sexista, antipatriarcal... Também há um programa universitário e, além disso, estamos organizando um Congresso Nacional por uma educação não-sexista, de norte a sul do país. Há também programas de saúde, de prevenção de HIV e também de apoio psicológico.

LGBT Out There: Como está o tema dos direitos civis das pessoas LGBT no Chile? Quais foram os principais avanços nos últimos anos?
Pierre: Na verdade não há muitos avanços.

LGBT Out There: Mas no ano passado houve, por exemplo, a aprovação da união civil, não?
Pierre: Sim. O que acontece é que, midiaticamente e socialmente, se está aceitando todo esse tema de novas realidades fora da heterossexualidade. Mas para por aí. Essas leis ficam capengas, pois os senadores e deputados vão tirando elementos que consideramos importantes, e fazem isso amparados pela Constituição. Na lei de identidade de gênero, por exemplo, foi tirado esse direito às meninas, aos meninos e aos jovens menores de idade, pois a Constituição diz que se deve protegê-los. E, de acordo com a Constituição aqui do Chile, nós estamos regulamentados pelos bons costumes e pela moral. Dessa forma, todas essas identidades “perversas” são imorais e contra os bons costumes e por isso é preciso proteger as crianças e os jovens menores de idade. Por isso eles ficaram de fora dessa legislação. O mesmo em relação ao matrimônio igualitário, que não contempla, por exemplo, um elemento de proteção a gays de recursos escassos. Não é o mesmo, por exemplo, a transferência de patrimônio de dois gays de classe alta, que passam facilmente um ao outro seus bens e imóveis, e dois gays de estrato social mais baixo, que se casam e o único que passam um ao outro são dívidas. Não é o mesmo. Portanto, não há uma complexização, não há uma politização dessa lei. Entretanto são avanços. Reconhecemos que são avanços e isso tem que ficar claro, pois, graças a essa visibilidade na opinião pública, a cidadania em seu conjunto avança a outros enfoques, a outras realidades e também, obviamente, ao apoio a nossas realidades.

LGBT Out There: O tema da Parada LGBT de São Paulo deste ano foi “Por um Estado Laico”, porque no Brasil o Estado está muito envolvido com a igreja. E no Chile, a igreja também exerce influência na política?
Pierre: Sim, aqui no Chile, na Constituição de 1925, o Estado se desassocia da igreja, mas não se torna laico. O Estado fica como confessional, e isso não mudou em nenhuma Constituição, ou nenhuma reforma da Constituição até o dia de hoje. Também estamos buscando que a educação seja laica e não-sexista, mas, para isso, temos que apontar para a Constituição. Também exigimos uma mudança na Constituição, para que o país seja laico e para que as famílias não estejam acima de sujeitos individuais ou coletivos que são mais importantes que a família, pois a família é um importante núcleo cultural e está consagrada na constituição como um sujeito de direito nas decisões, ou seja, se seus pais são evangélicos, eles têm o direito de decidir por você em que instituição educacional você vai se educar. E como aqui no Chile temos distintas formas de educação, tanto na privada como na pública, mais na privada, obviamente, então o pai e a mãe, ou o tutor ou a tutora desta criança, vão ter o direito de decidir por ela quais valores lhe serão entregues através da educação.

Sede do MUMS em Santiago

LGBT Out There: E aqui há um lobby religioso envolvido na política?
Pierre: Sim, e não somente da igreja. A igreja tem um poder bastante significativo na hora das decisões, principalmente de parlamentares e congressistas de direita e “centro-direita”, como por exemplo, a Democracia Cristã. Não são todos os democratas cristãos, mas há um setor importante que está contra essas mudanças. Então claramente há uma intenção política da igreja e do mundo privado, pois ao mundo privado só interessa essas sexualidades sempre e quando consumam e fiquem doentes para consumir seus remédios, não é? Então como não lhes interessam, obviamente não querem esse tipo de lei, como também não querem uma lei de aborto, uma lei que estenda a licença-maternidade de forma que a mulher trabalhe menos... É uma série de coisas que vem tanto do mundo religioso, que se expressa através dos cristãos, sejam evangélicos, católicos, protestantes, ortodoxos... Quanto do mundo privado, dos que fazem negócio com todas essas coisas. Obviamente, por tudo isso, são contra essas mudanças.

LGBT Out There: E quais são as principais dificuldades enfrentadas pelas pessoas LGBT no Chile? No Brasil, por exemplo, há muita violência e uma pessoa LGBT é morta todos os dias. Aqui no Chile, como é para um homossexual, uma trans...?
Pierre: Eu não poderia te dar uma resposta com dados empíricos, porque todas as realidades sexuais que se desligam da heterossexualidade são omitidas pelo Estado. Nós temos um censo, como todos os países, e em nenhuma parte, somos mencionadas. Sem o censo, somos omitidas. Obviamente é possível fazer análises qualitativas e quantitativas com amostragens pequenas, mas não uma referência nacional. Assim, por esse viés não posso te dar uma resposta, mas sim a partir da vivência própria e da vivência do MUMS. É difícil... É muito difícil viver aqui no Chile, obviamente não tanto como há 20, 30 anos, claramente. Mas continua sendo difícil. Continua sendo difícil ser viado, ser sapatão, ser travesti nos bairros mais periféricos, porque aí continuam matando, continuam batendo, continuam xingando essas pessoas nas ruas. Não é o mesmo que sair no centro de Santiago, que há mais gente e diferentes estratos sociais se cruzam... E também não é o mesmo ir caminhar e modelar nos setores mais acomodados, porque vivem outras realidades e, portanto, são mais conservadores e não convém tanto ir lá. Então há os dois extremos, os pobres que atacam por ignorância e outros, ricos, também por ignorância e por uma crença poderosa da igreja. Mas até hoje continuam te matando por ser gay, continuam te matando por ser trans e por isso surgem algumas leis, mas nós do MUMS criticamos a atual legislação, criada por Sebastián Piñera [ex-presidente], porque não é uma legislação que pune com uma pena real, pois é preciso que te matem para que o criminoso vá para a cadeia. É um processo quase civil. Não é uma lei que eduque, não é uma lei que previna. É só uma lei que pune e pune pela metade, ou seja, típico da direita, vigiar e punir.

LGBT Out There: E quais são as principais demandas hoje nesse sentido para que as coisas melhorem?
Pierre: Nós do MUMS entendemos que, felizmente ou infelizmente, como prefiram ver, a educação é transcendental e, portanto, nós demandamos uma educação pública, gratuita, laica, não-sexista, multicultural e intercultural desde a educação primária até a superior. Nós exigimos uma mudança curricular nas universidades e também no currículo profissional das pessoas. E somente com essas mudanças, a longo prazo, é que se vai mudar um pouco o paradigma e a cultura do país. Agora a curto e médio prazo é reformar essa lei atual, impulsionar outra lei... Exigimos também uma institucionalidade estatal que seja antidiscriminação, ou seja, que o Estado tenha um departamento antidiscriminação que trate exclusivamente destes temas. E tomara que isso se expanda ao poder judiciário. O poder judiciário aqui, por exemplo, tem um departamento só de famílias, porque há muita violência intrafamiliar. Aqui no Chile são necessários estudos para que nós, com dados verídicos, reais, digamos se há muita violência contra a população LGBTI no país. Necessitamos, portanto, um departamento jurídico somente para esses temas.

LGBT Out There: E aqui também não há lei contra homofobia, transfobia?
Pierre: Sim, é a lei antidiscriminação, a Lei Zamudio, criada por conta da morte de um jovem, Daniel Zamudio. Mas como eu dizia, essa lei não é suficiente, pois não educa, não previne, só pune, e não são punições severas.

LGBT Out There: O que você diria a um turista LGBT que vem conhecer o Chile?
Pierre: Depende do que a pessoa está procurando (risos). Se você estiver vindo por uma questão política, eu diria para ir conhecer as populações significativas. Se você vem fazer compras pode ir ao “Barrio Alto”, aos shoppings e ser feliz. E se quer conhecer a cultura LGBTI, então tem que sair à noite.

LGBT Out There: E que recomendações nos daria sobre literatura, cinema, arte?
Pierre: Literatura, o primeiro nome é Pedro Lemebel. É imprescindível. Não sei, são tantos autores que nem sei dizer.... Ah, também tem a Claudia Rodrigues, uma ativista travesti, o Victor Hugo, conhecido como “el Che de los gays”... Ambos são bem significativos. São feministas, são de esquerda, são LGTBI... Há outros que para nós são um pouco mais liberais e inclusive apoiaram em seu momento Sebastián Piñera, como Pablo Simonnetti e alguns outros, mas que eu não recomendaria. Se você quiser ler, leia, mas eu não recomendaria porque eu li e é uma literatura básica.

Pedro Lemebel - Frida II (1990)

LGBT Out There: E como é ser trans aqui no Chile?
Pierre: Bem, eu sou transgênero e ainda não me submeti aos processos de mudança de corpo e tudo isso, mas quando me arrumo e saio nas ruas, sou uma mulher biológica. Mas muitas pessoas talvez reparem em mim, pois talvez eu não tenha tirado bem os pelos da cara ou talvez não tenha me maquiado corretamente... Mas nunca vivi uma violência tão forte. Há outras pessoas que sim, obviamente, mas eu e meu círculo aqui no MUMS, não.

LGBT Out There: E aqui você pode ter seu nome social em seus documentos?
Pierre: Não, porque não há lei sobre isso. Há neste momento uma lei que está em votação, mas, como eu te dizia, não contempla as crianças e os jovens. A mudança de nome no momento se dá somente por processo judicial, que dura bastante. Mas antes disso, primeiro você tem que ver um psiquiatra e, antes do psiquiatra, um psicólogo. Se você não tem a assinatura do psiquiatra ou do psicólogo, não pode abrir um processo judicial e mudar seu nome. Nós queremos que isso mude, que seja feito de uma forma administrativa e que não seja necessário o requerimento de tantos especialistas, que às vezes são necessários, porque talvez você não seja trans, seja apenas uma pessoa muito feminina e ponto. Eu antes achava que era gay e muito feminina, mas me dei conta politicamente que não. Comecei a descobrir outras realidades e me dei conta que sou trans e foi como um descobrimento, porque eu sempre pensei que era gay, mas não era. Então muitas vezes acontece isso. Talvez você seja trans, talvez você seja intersexual, talvez você seja gay, e um profissional pode te ajudar a descobrir isso.

LGBT Out There: Muito obrigadx pela entrevista!
Pierre: De nada, obrigada você!

Para conhecer mais do MUMS Chile, é só acessar sua página oficial aqui.

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