Viagem iconográfica: o México através das cores de Frida Kahlo

Em meio a um mundo predominantemente machista, a artista mexicana Frida Kahlo conseguiu se sobressair como pintora ainda em uma época que poucas mulheres conseguiam se destacar. Em suas obras, cores quentes, fortes e expressivas, que ressaltam não só sua interioridade exacerbada, quanto uma identidade mexicana, colorida e viva.

Frida Kahlo - Imagem: Nickolas Muray

"Eu ando pelo mundo prestando atenção, em cores que eu não sei o nome, cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores..." E se você prestar atenção nas obras e nas cores de Frida, pode conhecer muito sobre seu país de origem, o México! Em um de seus diários, a pintora explica alguns significados e referências das cores presentes em seus trabalhos:

Trecho de um de seus diários

“O verde: luz morna e boa.
Solferino: asteca. TLAPALI, velho sangue de atum, o mais vivo e o mais antigo.”

Aqui precisamos fazer um importante parêntese, pois o solferino, que é uma cor escarlate, entre o encarnado e o roxo, remete ao passado mexicano, mais precisamente aos povos que ali estavam antes da chegada dos espanhóis. De acordo com Carlos Velázques, da Universidade Autônoma do México, para os povos pré-hispânicos, as cores tinham significados muito precisos e as tintas eram também muito apreciadas pelo que significavam. Os povos pré-colombianos utilizavam minerais, cascas de árvores, moluscos e folhas para colorir o seu mundo. Entre todas as cores, houve uma que se sobressaía: o vermelho intenso da grana cochinilla (Dactylopius coccus), pequeno inseto parasita do nopal, famoso cacto encontrado no México. Do corpo dissecado da fêmea, obtém-se o ácido carmínico, que é o corante vermelho conhecido como carmim.

No idioma asteca náhuatl, este pequeno inseto era conhecido como nocheztli, que significa "sangue de atum", e o pigmento extraído dele era muito significativo no mundo pré-hispânico, pois era empregado tanto em tecidos e trajes cerimoniais, quanto em códices e cerâmicas, além de esculturas, templos e murais. Portanto, era de grande importância para suas cerimônias e oferendas aos deuses. Com a chegada dos colonizadores, esse pigmento foi muito explorado pelos espanhóis. Junto com o ouro e a prata, foi um dos principais produtos de exportação da “Nova Espanha”.


Pirâmide do Sol, na cidade asteca de Teotihuacán - Imagem: Tiago Elídio

Além disso, tlapalia outra palavra destacada por Frida, é o termo mais comum na língua náhuatl para se referir à cor. Segundo explica Rodrigo Becerril Torres, a palavra é derivada do verbo “pa”, que significa “tingir”, “pintar”, começando com a marca de objeto indefinido “tla-“ e a terminação “-lli”, própria dos substantivos; assim, “tla-pa-lli” significa não só “o tingido/pintado”, “coisa tingida/pintada”, como também “vermelho”, algo similar ao que fazemos com as palavras “cor” e “corado”. Frida busca, portanto, resgatar essa história e a importância dessa cor na identidade mexicana.

“Café: cor de mole, de folha que se vai, terra.”

Prato com mole poblano - Imagem: Sarah Bossert/Getty Images

Aqui outro elemento importante da cultura mexicana, a culinária, mais precisamente o molho mole, um dos mais tradicionais do país. Embora também seja uma palavra proveniente da língua náhuatl, significando justamente molho, refere-se normalmente ao mole poblano, molho típico do estado de Puebla, preparado com vários tipos de pimentas e com chocolate, para equilibrar o picante, daí sua cor café.

“Amarelo: loucura, doença, medo, parte do sol e da alegria.
Azul: eletricidade e pureza, amor.
Preto: preto é preto, realmente nada.
Verde: folhas, tristeza, ciência, a Alemanha inteira é dessa cor.
Amarelo: mais loucura e mistério, todos os fantasmas usam roupas dessa cor ou, no mínimo, sua roupa interior.
Azul esverdeado: cor de anúncios ruins e de bons negócios.
Azul marinho: Distância. Também a ternura pode ser desse azul.
Vermelho: Sangue? Pois, quem sabe!”

Autorretrato na fronteira entre o México e os Estados Unidos (1932)

Em sua pintura Autorretrato na fronteira entre o México e os Estados Unidos, de 1932, podemos ver o uso de algumas dessas cores descritas por ela, como o marrom café para a terra, e o solferino, em um tom mais claro, em seu vestido, central no quadro, delimitador da fronteira entre os dois países. Em sua mão, a bandeira do México (sem a águia central), que possui as cores verde, branca e vermelha, que representam, respectivamente, esperança, unidade e o sangue dos heróis nacionais. Além das cores, o quadro é cheio de simbolismos. No lado mexicano, a natureza está em evidência, enquanto no lado estadunidense o foco são os arranha-céus, a eletricidade, as indústrias (destaque para as letras formando FORD nas chaminés), as máquinas e a poluição, ou seja, a ideia de “progresso” em voga na época.

No lado mexicano, um dos destaques é Teotihuacán, a "Cidade dos Deuses", vestígios de uma das civilizações mais importantes da Mesoamérica, a asteca. A pirâmide presente pode ser tanto a do Sol, quanto a da Lua, sendo simbolizadas acima por estas figuras. Também estão presentes peças de esculturas desse povo e, bem próxima a elas, uma caveira, importante símbolo da cultura mexicana, por sua famosa celebração do Día de los Muertos. Além disso, logo abaixo, flores exóticas das paisagens do país. É curioso que um dos aparelhos elétricos do lado estadunidense tem seu fio ligado às raízes de uma planta do lado mexicano. Curioso e representativo, afinal, muito da força de trabalho dos Estados Unidos vem do México. Frida pintou esse quadro depois de permanecer quase três anos no país vizinho. Colocando a si mesma em um pedestal, justamente na fronteira, é como se ela se sentisse paralisada entre esses dois mundos distintos, querendo se afastar de um para voltar ao outro, do qual aparentemente sente saudades, a depreender pelas dualidades apresentadas: história/tecnologia, natureza/indústria e calor/frieza.

Árvore da esperança, mantenha-se firme (1946)

Outro trabalho com uma estrutura semelhante é Árvore da esperança, mantenha-se firme, feito em 1946, depois de uma operação cirúrgica frustrada em Nova York. A frase que dá título à obra está escrita na bandeira que segura e vem de uma de suas canções favoritas, Cielito lindo, clássico da música ranchera, gênero popular e folclórico bastante característico do México. Quando se trata de uma canção que mexe com o patriotismo e a unidade do país, nenhuma supera Cielito lindo. Portanto, vemos Frida utilizando mais um símbolo da identidade mexicana em sua pintura. Além disso, também estão presentes o sol e a lua, cada um com uma Frida. De um lado, o corpo mutilado e sangrando em uma maca de hospital, sob o sol, que na mitologia asteca se alimenta do sangue humano dos sacrifícios. Além disso, as duas feridas em suas costas fazem eco nas fissuras da paisagem desolada que se vê atrás. Do outro lado, uma Frida mais forte, sob a lua, símbolo da feminilidade. Em suas mãos, o espartilho que esperava abandonar para sempre depois da cirurgia. É como se fosse um ex-voto oferecido à natureza e aos deuses de seus ancestrais indígenas. Vale ressaltar também as cores usadas em cada lado. No lado esquerdo, tons mais quentes, amarelados, remetendo ao medo e à doença. E no lado direito, tons mais frios, azulados, fazendo referência à ternura. A exceção é o vestido, vermelho, vivo e forte, representando justamente essas características.

O vestido vermelho usado na pintura, aliás, é conhecido como tehuana. Trata-se de uma peça feminina típica da etnia zapoteca, que habita o istmo de Tehuantepec, no sul do México, terra natal da mãe de Frida. As blusas curtas, em geral com estampados coloridos, e as saias amplas escondiam o corpo debilitado da pintora. "Sua maneira de vestir foi resultado de seu próprio e forte sentido de identidade, uma identidade construída na dor física", disse Circe Henestrosa, curadora da exposição "As aparências enganam", no Museu Frida Kahlo, sua famosa Casa Azul, realizada em 2012 na Cidade do México, com 300 peças da pintora. Esse traje "simboliza uma mulher forte e Kahlo escolheu usar esse vestido porque a ajudava a projetar suas convicções políticas e sua mexicanidade”, acrescentou. E a tehuana, evidentemente, é muito recorrente em suas pinturas.

O abraço do amor do universo, a terra (México), eu, Diego e o Sr. Xólotl (1949)

Em O abraço do amor do universo, a terra (México), eu, Diego e o Sr. Xólotl, de 1949, a estrutura de dois lados se repete. O tema desta pintura contém muitos elementos derivados da antiga mitologia mexicana. No centro da pintura, como uma Madonna, segura seu esposo em um abraço amoroso. A incapacidade de Frida de ter filhos a fez adotar um papel maternal em relação a Diego Rivera. E abraçando o casal, está Cihuacóatl, mãe-terra, deusa asteca da maternidade e fertilidade, e também guerreira. Era esse o nome dado, aliás, ao chefe do exército na sociedade asteca, posto que ocupava o segundo lugar mais importante na estrutura política. Próximo a eles, está o Sr. Xólotl, mascote do casal, da raça xoloitzcuintli, em português conhecida como “pelado mexicano”. Seu nome original foi recebido em homenagem ao deus asteca Xólotl, responsável pelo fogo e por levar os mortos até o submundo. E itzcuintli significa cão na língua náhuatl. Historicamente, acreditava-se que esse cachorro tinha o poder da cura. Além disso, dizia-se que o animal assustava os espíritos malignos e intrusos. A outra missão era conduzir as almas dos mortos em sua viagem para a eternidade.

Outros elementos presentes nesta obra são as vegetações características da flora mexicana, como os cactos, e seu vestido tehuana vermelho. Portanto, trata-se de mais uma pintura que mostra sua identificação e mistura com a cultura e a cosmogonia do México antigo, particularmente na crença do duplo no humano e no divino: dia/noite, frio/quente, masculino/feminino. A composição simbólica é protegida tanto por uma mãe-terra arquetípica que rodeia em seu seio a ambos os personagens e ela mesma também se encontra protegida pelo universo, mostrado como uma dualidade. E as cores são importantes para criar esses dois lados, remetendo mais uma vez ao que descreve no diário. Usa um tom café para representar a noite e a terra, e o verde para a natureza e o dia.

Minha ama e eu (1937)

A temática da maternidade também foi representada em Minha ama e eu, de 1937. Porém, neste quadro, é ela que está no colo e, neste caso, sendo amamentada. Frida não pôde mamar no peito de sua mãe, pois sua irmã nasceu apenas 11 meses depois. Ela precisou ser amamentada por uma ama de leite, descendente de indígena. Como a pintora não conseguia lembrar as feições desta ama de leite, esta foi pintada com a cara coberta por uma máscara funerária pré-colombiana. E o próprio rosto da pintora não é o de um bebê, e isso foi feito para representar que se tratava de uma lembrança da Frida adulta. Além disso, mais uma vez temos uma referência à Virgem com o menino. Porém, no caso, ela não está sendo devidamente abraçada e pode ser vista como uma oferenda dessa indígena aos deuses, como mostram algumas cerâmicas da época. É curioso notar também as gotas de chuva no céu, que lembram ao mesmo tempo gotas de leite e espermatozoides. Em relação às cores, mais uma vez temos o café, na máscara, e o verde, na vegetação, além de um céu meio cinza arroxeado, representando esse ambiente meio anuviado, tempestuoso, distante e sem muito conforto. E o branco de sua roupinha pode fazer alusão à pureza de um bebê.
           
Menina com máscara da morte (ela brinca sozinha) (1938)

Para finalizar esta análise, outra obra que remete à infância de Frida, Menina com máscara da morte (ela brinca sozinha), de 1938. Além disso, essa pintura foi feita quando ela estava de luto, logo após um aborto espontâneo. Para Frida, a morte foi um tema muito íntimo, pois sempre esteve presente em sua vida. Porém, para os mexicanos, a morte é vista de uma forma diferente. Nesta pintura, vemos uma menina com a máscara da morte típica da celebração do Día de los Muertos, que tem origem pré-colombiana. Segundo a tradição, neste dia, os mortos vêm visitar seus familiares, sendo, portanto, um dia de festa, alegria e oferendas. Assim, são erguidos altares com retratos de seus mortos, cercados de velas, flores e caveiras. E adultos e crianças celebram, comendo, bebendo, dançando e fantasiando-se de morte, como a menina retratada no quadro de Frida. Além disso, esta flor amarela é utilizada para guiar os espíritos dos mortos, e para isso é deixada no túmulo. Essa menina com a flor, no entanto, parece contrastar com o típico da celebração, pois, sozinha, em uma paisagem desolada e anuviada, nos traz certa melancolia e solidão. Além disso, a máscara ao seu lado também traz um aspecto um pouco assustador. No entanto, era usada como talismã para proteger as crianças contra o mal. Mais uma vez, vemos as dualidades presentes em Frida. E mais uma vez, elementos culturais mexicanos.

Portanto, embora muitos se refiram à obra de Frida somente como uma autorreferência a si mesma e aos seus sofrimentos, seus quadros vão muito além disso, pois são muito representativos da sociedade mexicana e da cultura à qual estava inserida. Em suas pinturas, podemos observar isso de forma muito clara, sobretudo pela paleta de cores usada. E através dos símbolos presentes, podemos ir além e aprender muito sobre essa cultura surpreendente e fascinante. ¡Viva la Vida!

Natureza morta: viva a vida (1954)

Por Tiago Elídio...

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