Viagem musical: o Rio de Janeiro de Cazuza


Cazuza já admitiu que eram indissociáveis a cidade e ele próprio, definindo-se como “um garoto de Ipanema". Segundo o cantor, "o lugar onde a gente nasce, onde a gente é criado, as pessoas que a gente ama, a família... a gente vai ser sempre dali”.



Observamos isso pelo vocabulário, na documentação de gírias e vícios de linguagem do dialeto carioca do seu tempo, e pela caracterização das regiões da cidade. Dos cidadãos marginalizados da Baixada Fluminense, Zona Norte e favelas que carregavam o grande peso das superinflações e o descaso dos governantes (Billy Negão, Largado no Mundo), à emergente classe privilegiada da Barra da Tijuca trancafiada em condomínios e shoppings para abster-se da violência (Burguesia, Eu Quero Alguém, Paixão) e, sobretudo, o playground de visitantes e da elite local da Zona Sul carioca (Completamente Blue, Comprimidos, Jogo de Vôlei, Faz Parte do Meu Show, Gatinha de Rua, Nem Tudo é Verdade).



Filho único de berço realmente esplêndido, passou a década de 70 descobrindo-se com a absorção de referências distantes do seu tempo e espaço, adotando ídolos do passado (sambistas desde o início do século e escritores psicológicos) e de terras distantes (poetas beatniks, roqueiros hippies e divas do jazz). No seu entorno, artistas do “desbunde” que frequentavam o posto 9 de Ipanema e aplaudiam o pôr do sol como qualquer um (Rita Lee, Ney Matogrosso, Caetano Veloso, Dzi Croquetes, Novos Baianos e afins) e que souberam antropofagicamente transpor para o Brasil ditatorial em que imperava a normalidade heterossexual normativa da velha-guarda toda a influência de artistas e pensadores anárquicos (The Cockettes, Living Theatre, etc.).

Jovem, rico e bonito, Cazuza – antes de encontrar-se como letrista e cantor – esteve tão perdido e em crise, como a violenta e empobrecida Rio de Janeiro da década de 80, que parecia buscar irracionalmente por Milagres.

Sua postura em relação à sexualidade - ambígua, ampla e abrangente - denotava a devida assimilação do caminho pavimentado pela geração anterior, nos anos 70, buscando a vida fora dos guetos (então encontrados nos michês da galeria Alaska ou nos clubbers da boate Sótão), a valorização da solidariedade e, acima de tudo, a diversão. Numa sociedade ingênua o suficiente para ainda (ou já) achar que seus problemas estavam no domínio político da direita ou da esquerda, que via crescer espantosamente o contingente de crianças de rua e ao mesmo tempo importava a fertilização in-vitro para casais com dificuldades de aumentar a taxa de natalidade, apenas a anarquia parecia ser racional. Apesar de tudo, o Rio dos anos 80 se apresentava como um local solar, de sorrisos escancalhados, conversas altas e peles bronzeadas.



A primeira fase das suas letras, marcada pela narração de uma busca incessante do jogo amoroso - regada a álcool, drogas, popularidade, marginalidade e promiscuidade - ao mesmo tempo em que diverte e empolga, denota aspectos emocionais conflitivos do grande poeta: angústia e lamento. (Culpa de Estimação, Amor Amor, Posando de Star, Down em Mim, Ponto Fraco, Por Aí, Todo Amor Que Houver Nesta Vida, Vem Comigo, Pro Dia Nascer Feliz, Carente Profissional, Carne de Pescoço, Maior Abandonado, Sem Vergonha).

A canção título do disco Só Se For A Dois parece uma conclusão sobre a busca amorosa de duas pessoas e como ela é mais bem sucedida que a relação entre dois países. A partir daí, já consciente da sua condição de soropositivo, intensifica a abordagem de problemas sociais locais e até universais, mas que sempre reverberam no âmbito do indivíduo: O Lobo Mal da Ucrânia, Ideologia, Um Trem Pras Estrelas, Blues da Piedade, O Brasil Vai Ensinar o Mundo...

Tomada como um castigo divino, providencialmente apropriado para a sodomia, a sociedade brasileira se assusta, achincalha e debocha dos homossexuais.

Quando o vírus começa a romper as imaginárias fronteiras idealizadas pelo povo e atingir mulheres, homens casados, heterossexuais e até recém-nascidos, as pessoas assumem o gay como bode expiatório. O povo se desespera e é consumido na maior demonstração de pânico e temor vista em terras brasileiras.

A cidade que já lidava com inflação, criminalidade, desemprego e ditadura, convivia agora com o fantasma da epidemia veloz que logo colocou o Brasil no topo dos países mais afetados pela doença.

Cazuza lutou bravamente contra os efeitos físicos e sociais desde a infecção (provavelmente ocorrida na primeira leva dos infectados, por volta de 1983) até o final da década, quando ainda não era possível ver saídas para o mal e quando tudo era treva.


Os moralistas provavelmente viram o esvaziamento das saunas e boates como uma benção. Cazuza sempre disse que a AIDS caiu muito bem para os reacionários e transformou toda a sua experiência em belas e definitivas canções: cantou estas “pessoas de alma bem pequena” em Blues da Piedade, desmistificou a culpabilidade marginal, deixando claro a situação do país em que “te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro, transformam o pais inteiro num puteiro porque assim se ganha mais dinheiro” em O Tempo Não Para.

E por falar no “tempo repetir o passado”, Brasil parecia sintonizar os pensamentos de Antonin Artaud lá nos idos anos de 1935 sobre A Peste e O Teatro:

“Sob a ação do flagelo, os quadros da sociedade se liquefazem. A ordem desmorona. Ele assiste a todos os desvios da moral, a todas as derrocadas da psicologia, escuta em si mesmo o murmúrio de seus humores, corroídos, em plena destruição, e que, num vertiginoso desperdício de matéria... os tipos de peste, dos quais parecem ter retido menos as características mórbidas do que a impressão desmoralizante e fabulosa que elas deixaram nos espíritos... a peste emerge dos bulbões, como a lava de um vulcão... tenta-se controlá-la pela respiração ponderada e pelo pensamento positivo... ninguém pode dizer por que a peste atinge o covarde que foge e poupa o dissoluto que se satisfaz sobre os cadáveres. Por que o afastamento, a castidade, a solidão nada podem fazer contra os efeitos do flagelo... e é então que se instala o teatro, isto é, a gratuidade imediata que leva a atos inúteis e sem proveito para o momento presente... nem a ideia da ausência de sanções nem a da morte próxima bastam para motivar atos tão gratuitamente absurdos por parte de pessoas que não acreditavam que a morte fosse capaz de acabar com tudo... pois a astúcia dos Espíritos maus, prevendo que o contágio cessaria nos corpos, aproveitou alegremente a ocasião para introduzir um flagelo muito mais perigoso, pois atinge não os corpos, mas os costumes... o teatro, como a peste, é feito à imagem dessa carnificina, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura, é um mal superior porque é uma crise completa após a qual resta apenas a morte ou uma extrema purificação... convida o espírito a um delírio que exalta suas energias... é benfazeja pois, levando os homens a se verem como são, faz cair a máscara, põe a descoberto a mentira, a tibieza, a baixeza, o engodo; sacode a inércia asfixiante da matéria que atinge até os dados mais claros dos sentidos; e, revelando para coletividades o poder obscuro delas, sua força oculta, convida-as a assumir diante do destino uma atitude heroica e superior que, sem isso, nunca assumiriam... e a questão que agora se coloca é saber se neste mundo em declínio, que está se suicidando sem perceber, haverá um núcleo de homens capazes de impor essa noção superior do teatro, que devolverá a todos nós o equivalente natural e mágico dos dogmas em que não acreditamos mais”.


O diálogo iniciado com a cidade em “Estranho o teu Cristo, Rio, que olha tão longe, além, com os braços sempre abertos mas sem proteger ninguém” de Um Trem Pras Estrelas é estendido para toda a nação em Brasil, em que Cazuza tenta convencer a nação a lhe contar seus segredos mais profundos: “Brasil, mostra a tua cara!”.

O vírus da AIDS, neste sentido, fez com que a sociedade deixasse de desviar o olhar para os homossexuais, vivendo na pele (ou no sangue) a realidade de que eles existem e não são um gueto estanque. As demarcações da sexualidade foram borradas. O esvaziamento dos guetos e o enchimento das salas de psicoterapia evidenciaram que as conquistas LGBT, pautadas numa associação do importado consumismo norte-americano e da brasileiríssima carência afetiva, geraram a compulsão sexual não tão bem resolvida como se propagandeava e fizeram – como numa metáfora de mau gosto – o enfraquecido sistema imunológico brasileiro se abrir para um oportunista senso de realidade.


Os locais de Cazuza:

Fãs aficionados beberão na Pizzaria Guanabara, no bar diagonal ou no Jobi para sentar-se no exato local onde o Poeta enchia a cara. Um petisco com cerveja ou um whisky trilho sem gelo no Baixo Gávea também servem de homenagem. A praia não tem erro, tem que ser entre o posto 9 e a Vinícius de Moraes. Depois de aplaudir o sol, o começo de noite no Arpoador pode relembrar o “verão do circo”, quando o Circo Voador nasceu ao lado da pedra. Endereços das antigas moradias (R. Prudente de Moraes, 923, a primeira, e 1620, a última). Um memorial do cantor e compositor pode ser visitado na Sociedade Viva Cazuza, de assistência a crianças e adolescentes carentes e soropositivas, em horário comercial (9h às 19h). Existe ainda um passeio guiado mensal (geralmente a última quinta-feira de cada mês) no cemitério São João Batista com contação de histórias curiosas e divertidas sobre os infindáveis ilustres sepultados.

Caso visitar cemitérios pareça mórbido demais e stalkear atuais moradores destes imóveis não faça parte dos planos, pode-se apenas aproveitar a cidade do Poeta, buscando eventuais afinidades entre gostos pessoais e os de Cazuza.

A praia da moda continua sendo Ipanema, sendo o gueto gay entre as ruas Farme e Vinicius e o trecho misto do coqueirão, no posto 9. Cinéfilo, Cazuza frequentava o cinema mesmo sozinho. Salas com programação cult são encontradas no Grupo Estação, no Cine Odeon, Espaço Itaú de Cinema, Cine Joia, Cine Botequim, Cinemateca do MAM e Cinemaison. Temáticas LGBT são o foco das mostras do Cineclube Gêneros e Sexualidades e do Rio Festival de Gênero & Sexualidade no Cinema. A área de boemia migrou do Baixo Leblon para o Baixo Botafogo, Comuna e Praça São Salvador. As lendárias Papagaio (ou Papagay) e a Hippopotamus foram extintas e deram lugar para a Fosfobox, Casa Nem, e as festas itinerantes como Chá da Alice, Boho e V de Viadão, que deram conta da espontaneidade e vibração. Já o glamour encontrado no passado nestas duas lendas da noite carioca parece ter ressuscitado na The Week e no Galeria Café.

Imagens: Site Cazuza.

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