Viagem cinematográfica: Veneza em Morte em Veneza

Por Luiz Sanches

O filme de Luchino Visconti, adaptado do romance de Thomas Mann, trata de esplendor e sepultura, de auge e declínio, mas, sobretudo, de beleza. Com atmosfera onírica, a película revela o interesse mútuo de um moribundo e discreto homem, que despreza afetações, e de um adolescente andrógino e cheio de vida.

A cidade, desde a sua fundação sobre palafitas de madeira, ostenta coragem e opulência, erguendo palácios de mármore com a união de mais de uma centena de ilhas, através de pontes e canais. Veneza fez um império a partir de um pântano. Ela enfrentou inundações, pragas, doenças, bárbaros, inquisidores, conspirações, traições, guerras e, contrariando todas as tendências, sobreviveu. Quando lutar era a tendência dos oponentes, a cidade resolveu conquistar o mundo através do encanto, e nunca mais mudou de estratégia.

Locações:

Vaporetto – logo no início do filme, Aschenbach, o músico protagonista da história, chega à cidade no barco que serve de transporte público. Observamos Veneza se aproximando pelo Bacino di San Marco. Ele encontra um homem idoso e efeminado, claramente maquiado para disfarçar a idade, desfrutando da companhia de homens mais jovens. O homem, embriagado, afronta debochadamente o protagonista, que o repele. Na sequência, Aschenbach precisa ainda pegar um táxi aquático com um gondolier que faz caminhos ilógicos para chegar no Lido, sestieri (ou bairro), onde ele deve se hospedar. Antes mesmo de pagar o trajeto, a gôndola parte às pressas e ele entende que fizeram aqueles caminhos porque o condutor não possuía licença para trafegar nesta área da cidade.

A saga de chegar a Veneza é comum para todos, dada à dificuldade de andar com bagagens num local com a geografia e disposição que a cidade apresenta, com tantas pontes, escadas e canais, ao invés de ruas.

Cenas do filme Morte em Veneza

Ele hospeda-se no Grand Hôtel des Bains (Lungomare Marconi 41), no Lido: um refúgio com praias, grandes hotéis e uma menor concentração de turistas. Na praia, é onde o artista tenta compor a sua música inacabada sem sucesso, sempre se distraindo com o belo Tadzio, que rola na areia com garotos másculos da sua faixa etária.

O bairro tem bom custo-benefício. Veneza não tem subúrbios: tem palazzos e basílicas flutuantes sobre águas calmas em oásis de tranquilidade sem (muitos) turistas. É uma questão de escolha, já que estando na Giudecca (mais hipster), Lido (litoral), Burano (artesões), fica-se mais longe das principais atrações, além de certa limitação das conexões por pontes, principalmente à noite, com a diminuição da frequência de embarcações.

Cenas do filme Morte em Veneza

Obcecado pelo garoto, ele o segue à distância por seus passeios em família pelas calles e sottoporteghi, nos labirintos de caminhos do canal atrás da ópera La Fenice, no dietro La Fenice, e no Campiello dei Calegheri.

Fugir dos caminhos arteriais é a melhor opção. Perder-se pelas trilhas sinuosas é a real oportunidade de se sentir dentro de uma peça de Carlo Goldoni ou de uma composição de Vivaldi, descobrindo ateliês, lojas, galerias, restaurantes, igrejas, praças e segredos que a caminhada pode oferecer. Pode-se também, num exercício de voyerismo, conhecer melhor os hábitos locais: gondoliers que interrompem canções para cumprimentar donas de casa que estendem roupas no terraço, frequentadores de bares em discussões ferrenhas sobre trivialidades e a pausa para um cigarro do artesão de máscaras da commédia dell'arte.

Cena do filme Morte em Veneza

Para evitar alimentar a compulsão por Tadzio, o artista decide ir embora. Ele vai à Piazza San Marco, cruza com o Palazzo Ducale e com a Basílica para resolver questões relacionadas à sua partida, mas acaba confirmando o que já desconfiava: uma praga está se alastrando pela cidade e a situação é omitida dos turistas aristocráticos. Ele adia a partida no intuito de alertar a família do garoto. Ele fantasia novamente uma aproximação e diálogo com o objeto do seu desejo. Tinge o cabelo, apara o bigode e maquia-se, ansiando chamar a atenção do seu amado. Volta para o hotel em Lido, arriscando expor-se à praga para realizar a tão ensaiada aproximação e para atingir o ápice do filme e da vida.


Cenas do filme Morte em Veneza

Mais do que nunca, o filme representa a cidade, do majestoso e lendário passado ao inexorável futuro fatídico que se anuncia. A Sereníssima mergulha lentamente na sua laguna, assumindo o seu risco e sem esperança de sobreviver, aos poucos, torna-se uma cidade submersa, uma Atlântida moderna. Ser responsável por si, até nesta situação extrema, senhora de si mesma.
Cena LGBT:

Registros da inquisição veneziana revelam que mais LGBT's foram decapitados ou queimados vivos que hereges. O maior cartão postal da cidade, o espaço entre as colunas que carregam o patrono original da cidade, São Teodoro com seu crocodilo, e o leão de bronze com asas, o próprio símbolo de Veneza, emolduram as gôndolas no Grande Canal em frente à Piazza de San Marco, com piso de pedras semipreciosas, tendo catedrais e palácios majestosos ao redor: este foi o local ideal para realizar as execuções.

Piazza San Marco - Fotografia: Luiz Sanches

A Veneza hedonista que se configurou após o seu declínio marítimo abraçou a prostituição feminina e estendeu seu carnaval por meses ininterruptos para recompor sua economia, tornando-se um parque de diversões sexual de viajantes de toda a Europa. As arcadas escuras perto do mercado de Rialto e mesmo o adro de igrejas do entorno foram convertidos em locais de pegação gay com o cair das noites.

A cidade decidiu então aproveitar a proximidade entre o local de concentração de comércio das refinadas prostitutas venezianas e os esconderijos homossexuais e converter os sodomitas, obrigando-os a atravessar a passarela conhecida como “ponte delle tette”, pagando as profissionais para fazerem topless. Ingenuamente, os governantes acreditavam que nenhum homem poderia não se interessar por dezenas de seios nus numa pequena passarela. A campanha evidentemente foi um fracasso e apenas serviu para intensificar o fluxo de homens heterossexuais que se aproveitavam da situação.

A pressão vinda de Roma e o medo constante de que a cidade fosse vítima de castigos divinos, que afundassem Veneza, em represália similar às descritas com as mitológicas Sodoma e Gomorra e a visibilidade da homossexualidade cada ver maior, principalmente entre os militares da marinha, nobres, artistas, jovens e padeiros, intensificou a perseguição aos homossexuais.

Até hoje é possível observar esculturas de cabeças de leões com bocas abertas onde a igreja incentivava a denuncia de comportamentos subversivos por toda a cidade. Entre outras coisas, foram descobertas enormes redes de conhecimento entre homossexuais na cidade, com processos envolvendo 30 ou mais homens em festas particulares, ou que nem todas as prostitutas da região de Rialto eram mulheres: havia homens travestidos de mulheres e mulheres travestidas de homens.

Na realidade, o sexo era um mercado rentável à cidade, que taxava impostos sobre a prostituição feminina, mas o sexo entre homens não gerava lucros à cidade. Sendo assim, eram condenáveis: as orgias entre homens (por não gerar renda) e a prostituição de transexuais (por configurar-se em propaganda enganosa).

Do outro lado da cidade, na margem oposta do Grande Canal, o palácio Ca'Dario ficou conhecido como o endereço maldito da cidade, onde um proeminente nobre inglês tornou-se pária da sociedade veneziana e deu fim a sua vida após um escândalo sobre o seu casamento secreto com outro homem. Ambos, envergonhados, suicidaram-se na casa.

Outro homossexual, fascinado pela história, comprou o imóvel após a tragédia, mas, perturbado, desistiu meses depois, repassando-o por um valor inferior ao que adquiriu. Uma série de mortes, falências e acidentes ocorreu no local, vizinho ao palácio de Peggy Guggenheim que atualmente encontra-se abandonado.

Hoje o atual prefeito de Veneza, Luigi Brugnaro (da recém-criada classe de “empresário bem-sucedido, não político e bem-intencionado”, como João Dória e Trump), que se elegeu com apoio da centro-direita de Vêneto encerrando uma sequência de 20 anos de governo centro-esquerda, tem decisões polêmicas, misóginas e xenófobas, como a proibição de diversos livros sobre minorias, como homossexuais e deficientes, nas escolas da cidade, a interrupção da realização da Parada do Orgulho LGBT da cidade e a lei antikebab.

João Dória e Luigi Brugnaro - Foto: Instagram Romero Britto

Isto provocou diversas reações, como desentendimentos virtuais com o cantor Elton John, protestos de centenas de escritores (que pediram à Veneza a retirada de seus livros dos acervos públicos) e manifestações artísticas, como as do coletivo de arte performática Stonewall Venezia e de Fiorella Mancini.

Performances Fiorella Mancini - Imagens: Flickr Fiorella Mancini

Mesmo com retrocessos, Veneza é, sim, um local a ser visitado. Vá, afinal não são os LGBT's que afundam Veneza e, sim, a ganância e o desrespeito à natureza (do ecossistema e do humano).

Por toda a história LGBT e por toda a efervescência cultural que a cidade oferece: as Bienalles de arte, teatro, dança, arquitetura, o festival de cinema (inclusive com o sub-festival “Queer Lion”, os grandes eventos como o carnaval e a grande regata e ainda uma infinidade de museus, igrejas, galerias, teatros e artistas que não podem ser ignorados.

Para as passeggiatas (passeios noturnos), além de concertos, peças, óperas e jantares existem opções (escassas) como a concentração do Campo di Santa Margherita, um aglomerado de bares e uma eclética multidão de italianos e estudantes estrangeiros, gays descolados, héteros internacionais, artistas e viajantes solitários que lembra a subversiva versão da última ceia do pintor veneziano Veronese. Entre estes bares e San Marco há a única boate da cidade, a Picollo Mondo (que funciona até as 4h da manhã). Existe também uma sauna apenas para homens – a Metrò Venezia Club.

Esporadicamente, agências de turismo fazem roteiros temáticos focados no públicos LGBT.

4 de julho - Cruzeiro de Barcelona a Veneza, passando por Palma de Mallorca, Ibiza, Malta, Catânia, Grécia, Croácia e Eslovênia por 1.499 dólares: http://atlantisevents.com/Barcelona-to-Venice-Cruise/

13 de julho – Caminhada guiada que passa pelos locais LGBT historicamente relevantes da cidade por 49 euros - http://deals.quiiky.com/package/atlantis-gay-cruise-italy-venice-gay-tour/

Orgulho LGBT - Imagens: Facebook Venezia Pride

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