Confira a entrevista com Márcia Zanelatto, um dos principais nomes do teatro brasileiro contemporâneo

Idealizadora da ocupação artística "Rio Diversidade", espetáculo que celebra a diversidade sexual e de gênero, em cartaz no Teatro Ipanema até 21 de agosto, autora da peça "ELA", que retrata a efemeridade da vida sob a perspectiva de um casal lésbico, em cartaz no Teatro Sesi Centro até 29 de agosto, além de autora de importantes peças recentes, como "Deixa Clarear", "Desalinho", "Por amor ao mundo - Um encontro com Hannah Arendt", entre outras, Marcia Zanelatto, um dos principais nomes da dramaturgia brasileira contemporânea, nos concedeu uma entrevista e falou um pouco sobre suas obras, seu processo criativo, a representação da diversidade sexual e de gênero no teatro, entre outros temas...

Marcia Zanelatto e Sapeca no Teatro Ipanema - Foto: Tiago Elídio

LGBT Out There: Como surgiu o projeto “Rio Diversidade”? De onde veio a ideia, como foi a seleção das peças...?
Marcia Zanelatto: A ideia veio de uma participação que eu fiz como dramaturga brasileira em um festival na Inglaterra, em um pequeno teatro chamado Theatre503, famoso desde os anos 60 por fomentar a dramaturgia. E anualmente eles fazem uma mostra de teatro de outros países. Nesse ano de 2014 foi de peças brasileiras. Eles pediram pra gente peças curtas, de 20 minutos ou no máximo meia hora. E eles mostravam quatro por noite, começava 5 da tarde, acabava 10 da noite e sempre tinha um debatezinho no final. E aí eu já voltei no avião impressionada com a ideia. Eu achei brilhante, porque eles conseguiam apresentar um volume de autores muito grande, pra uma plateia que estava realmente interessada nisso e com uma produção muito simples, porque, como são peças curtas, o tipo de produção é mais simples do que de uma peça longa. E ao mesmo tempo, acontecia outra coisa interessante, porque, como as pessoas visualizavam os trabalhos, viam produtores, curadores, isso disparava outros processos de montagem. Por exemplo, a minha peça depois foi apresentada em outro festival na França. Então eu voltei inspirada por isso, porque eu não via no Rio nem a coisa da peça curta, nem a coisa da mostra temática, então eu comecei a anotar no avião e pensar: “Mas qual seria o tema? Ah, LGBT!” O estímulo foi: “Poxa, a gente tem tanto dramaturgo gay, tanto diretor gay, tanto ator gay, atriz lésbica, todo mundo é tão livre sexualmente na parte da criação e da produção, por que nossos personagens são sempre heterossexuais? As histórias são sempre heterossexuais? Será que a gente não tem que dar um impulso nisso?” Isso eu pensei lá em 2014, em outubro, voltando desse festival, o "RedLikeEmbers". Então eu comecei a desenhar o projeto. E o projeto inicial contava com oito dramaturgos. Tinha gente do Maranhão, da Escócia, de São Paulo, além dos nossos dramaturgos aqui do Rio. Oito dramaturgos, oito diretores, uma gama bacana de gente. E a ideia era fazer duas peças por dia de 40 minutos. Mas na hora H, na hora de vender isso, isso ficava em 800 mil reais, era uma grana alta, e a gente não conseguiu captar. Eu apresentei o projeto algumas vezes e não consegui captar, mas eu consegui formar o time. Várias pessoas bacanas toparam. E quando surgiu o fomento “Cidade Olímpica”, no ano da Olimpíada, ele veio com uma alínea especial de patrocínio para LGBT, aí eu falei: “Ah, é aqui!” Como era 100 mil, eu reduzi tudo e fiquei com as pessoas com quem eu tinha mais intimidade, porque eu ia ter que pagar muito pouco. Então eu tinha que trabalhar com pessoas que eu conhecia bem, que confiavam em mim, Ivan Sugahara, Renato Carrera, Guilherme Leme, diretores com os quais eu já tenho uma estrada. O único com que eu não tinha ainda uma estrada era o Cesar Augusto. E os autores também eram pessoas que confiavam em mim. A gente já se conhecia há muitos anos e eles sabiam que eu tava falando sério. Então o processo criativo foi o seguinte: eu pedi a cada um dos autores uma peça curta de 20 minutos, um monólogo, porque com esse dinheiro só dava para fazer monólogo, sobre diversidade sexual e de gênero. Só pedi isso. Quando eles me mandaram o material, eu já tinha os diretores, então eu fui vendo o que eu achava que tinha a ver. Por exemplo, eu tinha muita vontade de apresentar o Ivan Sugahara e o Jô Bilac, que não se conheciam ainda. E eu tinha muito vontade de disparar um encontro entre o Renato Carrera e a Daniela Pereira de Carvalho. E quando eu li a peça do Joaquim Vicente, “A noite em claro”, que relembra o assassinato do Luís Antônio Martinez Corrêa, eu falei: “Só tem uma pessoa para dirigir essa peça: o Cesar! Aqui no Rio é o Cesar, sem dúvida!” E aí eu fui juntando autores e diretores e os diretores tinham a primazia da escolha do elenco. Eu não me meti. Eu indiquei eventualmente, por exemplo, pro Renato eu indiquei a Kelzy [Ecard], e eles já estavam loucos para trabalhar juntos. Mas eu não conhecia o Thadeu [Matos], que foi escolhido pelo Cesar, por exemplo. Então primeiro a gente teve uma fase de trabalho cada um na sua. Eu tinha uma grana pra cada um de cenário e figurino, de direção de arte. Era, se eu não me engano, mil ou dois mil reais, de cenário e figurino, mais uma grana de luz. E a gente fez no Castelinho do Flamengo. Teve um momento que a gente se juntou lá para fazer aulas sobre sexualidade e gênero. Aí a gente trabalhou com a Carla Rodrigues, com a Berenice Bento, a gente teve a Lucy Anna [Lima Alves], que era funcionária do Castelinho na época e que tinha uma experiência de transição masculino pra feminino e que nos abraçou e nos deu muito suporte. Nos deu muito pito também, sobre coisas que a gente tava pensando errado, mas nos deu muito suporte e tá com a gente até hoje. E aí a gente fez a primeira edição do projeto no Castelinho. Eram quatro peças, uma em cada recanto do Castelo, e os espectadores iam distribuídos em quatro grupos e circulavam. Eu precisava de alguém que alinhavasse isso tudo. E tinha conhecido o Bruno Henríquez numa mesa de bar e ele me contou que tinha uma drag, que estava desenhando uma drag, porque ele é designer, e tava começando a passar essa drag pro rosto dele. E eu fiquei encantada com a drag dele! Quando eu comecei a montar o projeto e eu vi que eu ia precisar de um mestre de cerimônias, eu falei: “Eu vou chamar o Bruno, pra ele trazer a drag dele.” Como não tinha dinheiro no orçamento pra isso, porque eu não tinha pensado nessa hipótese, eu cedi pra ele o meu cachê de autora, fiquei só com o meu cachê de produtora. E ele então criou a Magenta, levou ao corpo a Magenta nesse movimento. Porém, quando acabou, a gente tinha um espetáculo que só podia fazer para 60 pessoas e, mesmo se a gente cobrasse um ingresso caro, de 100 reais, a gente não pagava, porque no Castelinho a gente tinha que levar absolutamente tudo, qualquer coisa. Era muito caro. Portanto, era um projeto que não tinha como sobreviver sem grana, sem patrocínio. A gente chegou a ganhar o fomento “Calote” (risos), o fomento que o prefeito Eduardo Paes deu o calote em todo mundo. Eles não pagaram. Então a gente chegou a esperar por um tempo, tinha umas propostas da gente continuar, algumas pessoas da SMC [Secretaria Municipal de Cultura] gostavam muito do projeto, queriam que a gente continuasse... Só que veio o advento Marcelo Crivella, a nuvem negra que se abateu sobre a nossa cidade. E aí caiu toda a hipótese de patrocínio. Nesse mesmo momento, eu tive, como produtora, uma reunião no Teatro Sesi Centro para falar de um outro projeto, da minha peça sobre Hannah Arendt, e aí eles me perguntaram do projeto “Rio Diversidade”. E eu falei: “Pois é, eu tenho muita vontade de fazer uma adaptação para o palco, pra torná-lo viável, mas eu não tenho grana.” E eles tinham um pouco de grana. Eles tinham, na época, 40 mil para comprar uma temporada de seis semanas, e eu falei: “Olha, 40 não dá, mas eu vou arriscar e vou botar do meu bolso o que falta.” Então foi lindo, a gente se enfiou no Teatro Sesi e passou duas semanas criando a adaptação das peças pro palco. O cenógrafo Daniel de Jesus foi fundamental, porque ele criou realmente um cenário, porque antes só tínhamos uma direção de arte. E ele criou realmente um cenário. Os diretores com os autores criaram os figurinos, e a gente foi criando essa adaptação que é o que a gente tem aqui hoje no Teatro Ipanema. Essa versão fez o Teatro Sesi, depois ela fez uma temporada em São Paulo e agora ela tá aqui no Teatro Ipanema.

Marcia Zanelatto no Teatro Ipanema - Foto: Tiago Elídio

LGBT Out There: E sobre seu texto, “Genderless – Um corpo fora da lei”, como foi a concepção dele?
Marcia: O “Genderless” foi o seguinte: eu tinha uma peça que era a hipótese de uma pessoa sem gênero. Eu já tinha escrito o livro sobre o Thammy Miranda, já tinha avançado muito na questão da transgeneridade e o Guilherme Leme estava muito interessado em saber o que vinha depois disso. E a gente tava conversando seguidamente, eu escrevendo, mandando coisa pra ele, a gente discutindo, até que eu achei no blog da Helena Vieira, que é uma transmulher maravilhosa, que eu admiro muito, uma intelectual de peso, achei a história da Norry May-Welby, que foi a primeira pessoa a ser reconhecida legalmente pelo Estado da Austrália como uma pessoa sem gênero. Ela conquistou o direito de ser entendida como nem homem e nem mulher legalmente. E a gente ficou muito encantado com isso, porque isso parecia uma grande revolução, a explosão da ideia de gênero. Vem cá, mas a gente tem gênero pra quê? Se você comete um assassinato, perante a lei, você é melhor ou pior por que é homem ou mulher? Não. Todos os seus direitos como ser humano são maiores ou menores por que você é homem ou mulher? Não. Em relação à natureza, o que temos nesse momento em termos de conhecimento? O que a gente tem é que o genoma nos mostrou que somos muito mais homem e mulher do que homem ou mulher. O fenótipo, que é a parte física do corpo, é 20% desse processo bioquímico. Então por que você se fia em 20% do processo pra definir o gênero? Porque na verdade não precisa definir o gênero. A gente pode se libertar disso. Houve um tempo em que a gente tinha na carteira de identidade raça, religião... Hoje em dia nas novas carteiras de identidade não tem mais o sexo, graças a deus, mas a gente precisa tirar o sexo de todos os documentos, porque isso não te diferencia. Mas já me perguntaram: “Ah, e se eu morro num acidente e eu sou trans, não vão saber se na minha carteira não tiver escrito que eu sou transmulher.” Eu falei: “Qual a diferença?” Os procedimentos médicos pra uma pessoa trans são particulares ao mesmo nível que uma pessoa grávida, ou uma pessoa diabética... Então não precisa necessariamente ter isso no documento. Acho que até pode ter de alguma forma essa informação por uma emergência, claro, como o grupo sanguíneo... Tratar isso menos como uma coisa legalista, porque o grande equívoco que Marcelo Crivella e seus primos da Igreja Universal fazem é equivocar o sexo e o gênero e se usar disso como se fosse uma coisa natural, porque, como o fenótipo indica uma diferença, eles associam ao gênero e colocam a ideia de que se você tem a genital masculina você é homem, se você tem a genital feminina você é mulher. Eles tão operando ainda no século XVIII. Mas eles só operam no século XVIII porque isso dá muito dinheiro, porque se isso não desse dinheiro, se o que desse dinheiro fosse qualquer outra coisa, eles usariam essa qualquer outra coisa. Eles são absolutamente dinheiristas, o plano da Igreja Universal do Reino de Deus é um plano de poder. Então o que a gente queria? A gente chegou à conclusão de que a gente queria fazer uma peça que falasse sobre isso. E aí eu comecei a ler a história da Norrie, com quem eu falo por e-mail, mas não queria que fosse a Norrie em cena, eu não achei isso justo e nem contemporâneo, uma atriz fingindo que é a Norrie. Eu queria falar sobre, eu queria narrar a história da Norrie. Eu queria chamar as pessoas e falar: “Vamos falar sobre a Norry May-Welby? Porque, olha, isso é impressionante!” E a Norry adora a peça, ela gosta muito, ela gosta da Larissa fazendo, ela gosta do texto, gosta da direção, acha ousado e aí é isso. O “Genderless” foi essa história. E a gente vai fazer uma versão entendida para 2018.

"ELA" - Foto: Divulgação

LGBT Out There: E sobre sua outra peça que está em cartaz no Rio, “ELA”, como foi a ideia de trabalhar com essa doença, a esclerose lateral amiotrófica?
Marcia: Essa ideia veio do Paulo Verlings. Ele me ligou e falou: “Marcinha, eu tô com um projeto, é sobre a esclerose lateral amiotrófica.” Eu falei: “Sobre o que, Paulinho? Eu não conheço, não sei o que é.” Não sabia. Mas eu sou muito intuitiva, muito, e quando o Paulinho começou a me contar o que era eu comecei a ver imagens, imediatamente. A essa altura, o meu pai já estava num estágio muito avançado de câncer, e eu queria falar sobre perda. Eu queria falar sobre amor e sobre perda. Então eu falei pra ele: “Paulinho, eu quero, mas eu não tenho a menor ideia de como a gente vai falar sobre isso...” Porque a doença é o antiteatro, o teatro é pura expressão, é tudo aquilo que você fala e que você faz. A literatura é o mundo interior, ela avança sobre o mundo interior com muita facilidade. O teatro, digamos assim, não é essa a facilidade dele. Mas quem faz teatro não tá interessado em facilidade, nós já sabemos disso. (risos) Aí eu falei: “Olha, eu não tenho a menor ideia de como a gente vai fazer isso, mas vamos fazer!” E aí ele tinha o tema e as três atrizes. Quando eu avancei no assunto, eu fiquei chocada. Eu pensei: “Caceta, que que eu vou fazer com isso?” E falei: “Paulo, eu preciso de relações humanas e eu tenho um elenco de três mulheres da mesma idade. Eu não tenho uma médica experiente, eu não tenho um pai, uma mãe...” Aí pensando nessas articulações possíveis entre três mulheres da mesma ideia, e até lendo e estudando o assunto, e lendo o depoimento de pessoas que viveram o ELA, eu constatei que a maior dor é a dor do casal, porque de repente a pessoa que você ama vira seu avô, seu bisavô, no sentido de que ela envelhece, ela definha muito rápido, é coisa de dois anos. Então essa relação de amor toma uma pancada muito violenta. Aí eu falei assim: “Claro, vai ser um amor entre duas mulheres!” Óbvio! Eu não tô falando aqui “precisamos tirar os personagens LGBT do armário”, que é a nossa grande frase da ocupação “Rio Diversidade”? Eu falei: “É isso que a gente tem que fazer”. Aí comecei a bolar algumas coisas. Eu escrevi 17 páginas na primeira vez que sentei para escrever o ELA. E essas 17 páginas que eu escrevi tão em cena, porque eu tava muito comovida com o processo do meu pai. E a peça me ajudava a elaborar o meu luto. Aí eu li. Eu falei: “Paulinho, eu tenho 17 páginas e eu quero ler pra vocês. E eu tenho que dizer uma coisa: eu fiz uma escolha, eu não sei se você vai gostar. A coisa acontece com um casal de mulheres.” Ele falou: “Claro, problema nenhum, acho maravilhoso, qual o problema?” Aí eu fui e li pra ele as 17 páginas. E ele falou assim: “Cara, isso é muito bom!” Eu falei: “Tá bom? Tá bom pra vocês?” E imediatamente ficou claro pra mim que a Carol [Pismel] faria a Isabel, e eu pisei fundo no texto, porque eu tinha ali uma atriz da altura da Carol, que podia fazer as pessoas rirem e chorarem ao mesmo tempo, como eu também tava sobre a morte do meu pai... E a Carol pra mim era uma Ferrari, eu podia usar tudo que eu sabia, porque ela ia saber fazer. Então em um certo momento eu falei: “Paulinho, eu tô escrevendo pra Carol. O diretor é você, mas essa personagem eu tô escrevendo pra Carol. Você que sabe...” E ele falou: “Marcinha, pra mim é a Carol, não tenho a menor dúvida.” Então foi isso o que aconteceu. Depois disso, eu escrevi mais uma parte do processo. Trabalhei bastante na estrutura, para que ela fosse não-linear, mas não deixasse ninguém com gosto de não-linearidade na boca, para que as pessoas pudessem acompanhar com bastante tranquilidade essa história não-linear. E sobre o final, a última cena, eu falei: “Paulo, eu preciso estar com meu pai.” O meu pai tava morrendo. Eu falei: “Posso escrever por último? Você anda com a peça e eu vou escrever isso por último.” O meu pai morreu e dias depois dele morrer eu acordei e vi a última cena: é o encontro delas. Eu fico até emocionada, porque eu não tive essa ideia, eu vi! Eu falei: “É isso!” Eu acho que uma peça é um organismo vivo, e tem uma hora que ela faz pedidos pra você, ela te fala o que ela quer. E esse final, essa peça me falou o que ela queria. Eu achei lindo, porque esse final é extremamente regenerador e zero didático, porque o que ele tá falando é: “Faríamos tudo outra vez, se preciso fosse, meu amor!” Enfim, é isso o “ELA”. Foi esse o processo.

Marcia Zanelatto e a atriz Gabriela Carneiro da Cunha - Foto: Tiago Elídio

LGBT Out There: E como você vê a questão da representação da diversidade sexual no teatro atualmente? 
Marcia: Olha, uma pessoa que eu gosto muito, uma escritora que eu gosto muito, quando viu o “ELA”, virou pra mim e falou assim: “Que ótimo, lésbicas falando sobre lésbicas.” E eu fiquei um pouco triste. Em primeiro lugar, porque se tem alguma coisa da qual eu tô falando realmente do ponto de vista pessoal ali é da perda e não exatamente da relação homoafetiva. Eu queria muito que a gente entendesse que isso não importa. Que esse casal é de lésbicas e podia não ser e que é isso que é importante. Quando a senhorinha tá lá no teatro se emocionando, ela tá se emocionando por empatia, porque ela é um ser humano e tem seres humanos em cena. A nossa grande vitória vai ser quando a gente não precisar pensar dessa forma, que lésbicas têm que falar de lésbicas, transgêneros têm que falar de transgêneros... Não na arte. Eu acho que tem outros campos de exercício da representatividade que são muito eficazes. O campo político principalmente. Por exemplo, a gente tem discutido aqui nos debates a questão da patologização da transgeneridade, de tirá-la do código de doenças, mas a gente tem que ouvir os transgêneros para chegar a essa conclusão, porque se o cara precisa de hormônios, cirurgias e todo um aparato técnico, médico, como é que eu posso avaliar isso? É ouvindo ele! Como a gente vai criar uma lei de proteção aos LGBTs, pra acabar com essa chacina de LGBTs que tá acontecendo no país? Ouvindo os LGBTs! Então no campo política a representatividade é expressa. No campo da arte, se o ator tiver gênero, ele tá fudido. A gente viu agora a Juliana Galdino fazendo “Leite Derramado”, fazendo o papel de um velho aristocrata, e era uma das coisas mais maravilhosas que já se viu no teatro brasileiro. Você vai cobrar da Juliana que ela não é homem? Não faz sentido.

LGBT Out There: Eu acho que realmente não é excludente, que você não precisa ser gay ou lésbica pra falar sobre gay ou lésbica, mas você não acha que um escritor gay ou uma escritora lésbica consegue trabalhar melhor suas próprias questões? 
Marcia: Eu não sei. Por exemplo, eu tenho uma peça chamada “Desalinho”, que até me deu o Prêmio APTR de melhor autora, e ela fala sobre o amor de dois irmãos. Eu nunca amei meus irmãos, eu tenho dois irmãos homens, três irmãs mulheres e eu nunca tive romance com meus irmãos nem com minhas irmãs. Mas a peça é linda, modéstia à parte, é poética, ela fala do amor impossível. Eu nunca vivi um amor impossível. Todos os meus grandes amores eu pude realizar. Uma vez eu falei numa FLUP: “Se eu exijo que a peça sobre a questão racial seja escrita por uma pessoa negra, essa pessoa negra nunca vai poder escrever sobre outro assunto?” Eu acho injusto, porque essa coisa que o artista tem, de não ter fronteira, é um farol pro mundo. Um dia a humanidade tem que chegar nisso, que é o artista, pois o artista se expõe... Se expõe à miséria, à censura, expõe o seu corpo, a sua imagem, se expõe a isso tudo, porque ele é uma pessoa fronteiriça. O artista não tem país, o artista não tem emprego. O artista que é empregado é uma contradição em si, porque se ele é empregado, ele é censurado. Ele não pode ser censurado, ele não pode atender demanda, isso não pode estar em primeiro lugar, porque quando você tá escrevendo uma peça, quem manda em você é a peça. Por exemplo, eu escrevi uma peça chamada “Assassinas por amor”, que conta a história de uma mulher que vinga um assassinato. E ela mata. Eu nunca matei. Eu não posso ter que matar pra escrever isso. E a gente não pode exigir que as pessoas trans, da mesma forma, só escrevam sobre transgêneros. Muito embora eu tenha a seguinte posição: a gente tem duas grandes responsabilidades agora nesse momento do nosso país, toda essa revolução que tá acontecendo das minorias que tão exigindo os seus direitos... A gente tem a obrigação de empregar transgêneros, negros, mulheres... A gente tem obrigação de dividir esse espaço com as pessoas. Então eu sou mulher, lésbica, eu sou uma minoria. Eu tenho que apoiar alguma outra minoria. Então o negro que tá do meu lado, eu tenho que apoiar. O transgênero que tá do meu lado, eu tenho que apoiar. E nós precisamos contar essas histórias dessas pessoas. A Glória tá sendo um gênio. Eu amo a Glória Perez. Sou extremamente grata pelo que ela tá fazendo pelo nosso país, mas a gente tem que chegar ao ponto em que toda novela tenha gays, lésbicas e transgêneros. A história da novela não precisa ser isso. Essas pessoas têm que fazer parte da vida da gente, como elas fazem! Elas fazem! Os negros são parte da vida dos brancos e os brancos são parte da vida dos negros e acabou! A gente precisa ver isso. Representatividade na arte pra mim é isso. Não é dizer quem tem que escrever sobre o que, quem tem que fazer tal papel. O [Luis] Lobianco fazendo Gisberta é lindo, gente! Mas a Bárbara Aires fazendo Tchekhov também é lindo, entende? E é isso. Lobianco e Bárbara Aires têm que estar de mãos dadas, porque eles são pessoas da fronteira, eles não podem ser exigidos em algum posicionamento, como a gente tem que exigir dos discursos políticos.

"Deixa Clarear" - Foto: Divulgação

LGBT Out There: E em relação a suas peças sobre mulheres marcantes, Clara Nunes, Hannah Arendt e Florbela Espanca, como se deu a escolha delas? 
Marcia: Foi também presentíssimo do acaso. A Clara Nunes é um projeto da Clarinha, da Clara Santhana. Eu fui convidada por ela e pelo Isaac Bernat. E me apaixonei. Eu já amava muito a Clara Nunes, porque ela realmente é uma referência. Eu tenho 46 anos e quando a Clara tava viva, eu já existia. Eu via a minha mãe ouvindo Clara Nunes e cantando Clara Nunes e era muito importante pra mim, pra nós, ali dentro de casa. A gente gostava muito dela. E quando eu mergulhei na Clara Nunes, eu vi que ela era necessária. Foi em 2013. E eu moro em Laranjeiras e, um dia, em uma daquelas manifestações, o meu filho, que tava indo jogar videogame na casa de um amigo, levou um tiro de bala de borracha em cima do olho esquerdo. Ele poderia ter ficado cego. Naquele momento ali, de ver a polícia nos ameaçando - a polícia quase cegou o meu filho! - eu vi que a gente tava muito perto de um estado de repressão, de um estado de exceção de novo. E a Clara cantou isso. Então pra mim foi um grande mergulho. “Nós precisamos nos defender com Clara Nunes, porque vai haver uma disputa de narrativa de novo aqui, uma disputa de narrativa da realidade e a Clara tem muito a dizer.” Sobre o “Desalinho”, eu tive uma experiência tão maravilhosa com o Isaac Bernat, que eu considero meu irmão na arte, que eu tirei o “Desalinho” da gaveta. Eu falei: “Isaac, eu tenho uma peça muito delicada, você quer dirigi-la?” Eu entreguei pro Isaac, porque só ele poderia dirigir aquela peça. E ela é uma peça que bebe totalmente da Florbela Espanca, da língua portuguesa, da poesia, que é a minha origem. Eu comecei a escrever escrevendo poesia. E a gente viu que queria fazer uma coisa nova juntos... Tinha sido incrível trabalhar com a Kelzy, com a Carol, as duas são maravilhosas, com o Gabriel Vaz... Eu comecei a pensar num projeto pra Kelzy ser cabeça de elenco, protagonizar, e aí eu me lembrei da Hannah Arendt. Eu falei: “Kelzy, você gosta da Hannah Arendt? A Hannah Arendt é incrível! Vamos dar uma mergulhada?” Nossa, aí foi outra paixão na minha vida. Veio de 2014 pra cá. E eu acho que o “Rio Diversidade” existe, a ocupação “Grandes Minorias”, que eu fiz em 2015 no Teatro Glauce Gil, o “ELA”, meu amadurecimento como artista, dentro da sociedade esses debates que a gente propõe, todo esse assumir um lugar perante a sociedade, de disputar essa narrativa, tem tudo a ver com a Hannah Arendt. Ela me disse tudo. Ela sentou e falou: “Foi assim. Foi assim que nós chegamos ao totalitarismo.” Porque a pergunta é: “Como é que a humanidade, uma parte considerável da humanidade, trocou o ‘não matarás’ pelo ‘matarás’?” Aconteceu um fenômeno ali muito intenso de troca de narrativa mesmo. De uma hora pra outra, ser judeu virou um crime. Não era!

LGBT Out There: Não só judeus, né? Os homossexuais, testemunhas de Jeová, deficientes... Depois dos judeus, os homossexuais foram o grupo mais perseguido pelos nazistas.
Marcia: É, porque se você for pensar, nos anos 20 as pessoas tinham uma liberdade sexual e de gênero maravilhosa. Os anos 20 eram o verdadeiro século XXI. E aí o que aconteceu? Uma ceifa. E a gente tá muito perto de novo, porque a criminalização dos LGBTs é muito intensa. Senão a gente não taria matando um por dia. E não é um problema só dos LGBTs, é um problema social gravíssimo. O Brasil é muito machista. O macho conquistador que entrou no Brasil estuprando as índias, roubando o ouro, ele tá aqui, tá aqui na porta. Todo dia. Porque ele teve muito poder. Esse tipo de macho no Brasil teve todo o poder. Nas Capitanias Hereditárias, o rei não tinha como dar conta dessa extensão toda de terra, então o que ele fez? Ele deu o poder de criar leis, de cobrar impostos e de matar! Então quem tem o poder no Brasil até hoje? O Aécio acabou de dizer: “Tem que ser alguém que a gente possa matar”. E o Aécio tá no Senado, quase virou presidente! Como assim?! Ele se autodeclarou um assassino. Ele é um psicopata autorizado, de uma família que tá no poder aí há muito tempo...

LGBT Out There: Pois é, é assustador... E pra finalizar, o site, além de cultura LGBT, é sobre turismo e lugares, então eu gostaria que você falasse algum lugar aqui do Rio que você gosta bastante.
Marcia: Poxa, vou te falar um lugar que eu acho muito LGBT. Eu amo esse lugar! É o Parque Guinle, que é do lado da minha casa. É uma coisa linda, porque é um parque onde você vê casais de mulheres, casais de rapazes, pessoas que vão descansar, dormir, na hora do almoço, funcionários de supermercado, de farmácia, jovens tocando violão, ensaiando música, ensaiando teatro... Ele é um parque iluminado. E eu nunca ouvi falar de assalto e nem de violência nesse parque. Ele é um lugar muito delicado, muito suave, em Laranjeiras. Eu canso de ver os rapazes namorando, as meninas namorando, na beira do lago, deitados na grama... É lindo!

Parque Guinle no Rio de Janeiro - Foto: Facebook Parque Guinle

LGBT Out There: É bacana ver espaço público ocupado dessa forma... 
Marcia: Lá na Espanha, em Madri, eles estão fazendo um projeto lindo de ocupação de praças, com plantio de plantas, de pequenas coisas pra se comer também, algumas leguminosas...

LGBT Out There: Ah, eu visitei Madri ano passado e fui também numa pracinha que era cuidada pela comunidade...
Marcia: Isso, ali em Lavapiés?

LGBT Out There: Isso, deve ser a mesma.
Marcia: “Esta no es una plaza”, alguma coisa assim, não?

LGBT Out There: Isso! Exatamente!
Marcia: Eu fiquei apaixonada por Madri...

"Esta no es una plaza" em Madri - Foto: Tiago Elídio

LGBT Out There: Falando nisso, também ia te perguntar sobre alguma viagem, algum lugar no mundo que você tenha gostado.
Marcia: Ah, eu fiquei louca por Madri! Louca! Cada bar parece que você tá na casa de alguém, porque é tão íntimo. As pessoas são muito simpáticas, muito a fim de conversar, come-se muito bem. É caro, mas muito menos caro do que o Rio, pelo que você recebe. Fiquei louca. E muitos gays, né? Muitos LGBTs! Cidade livre!

LGBT Out There: Bom, acho que é isso, obrigado pela entrevista! Adorei! 
Marcia: Poxa, querido, prazer!

E para conferir as peças da Marcia em cartaz no Rio de Janeiro, aqui vão as informações:

Rio Diversidade 
Teatro Ipanema - Rua Prudente de Morais, 824
Sábado, 12 de agosto - 21h
Domingo, 13 de agosto - 20h
Segunda, 14 de agosto - 20h
Domingo, 20 de agosto (apresentação extra) - 20h
Segunda, 21 de agosto (apresentação extra) - 20h
Ingresso: R$ 40,00

ELA
Teatro SESI Centro - Av. Graça Aranha, 1
Segundas e terças até 29 de agosto - 19h30
Ingresso: R$ 20,00

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